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É fogo!

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Álcool sempre se dá um jeito de achar

Álcool sempre se dá um jeito de achar

A ideia até que era boa, mas também as melhores costumam encontrar quem as critique. Veja-se o que aconteceu com Galileu quando ousou sugerir que a terra girava em torno do sol. Outra prova da incompreensão que cerca os pensadores verdadeiramente originais é o caso do vereador gaúcho que apresentou à câmara municipal a proposta de se pulverizar a cidade com álcool. Para provar a viabilidade e a eficácia de uma chuva etílica no combate à Covid – 19, lembrou que há muito as plantações são pulverizadas contra todo tipo de praga e que, excetuando-se as ditas pragas — gafanhotos, formigas e similares — todos consideram os resultados como a salvação da lavoura. Argumentou ainda que vários empresários locais possuíam aviões e patrioticamente concordariam em emprestá-los para a nobre tarefa de sobrevoar a região e despejar do alto a cura do coronavirus.

A bancada da oposição, talvez lamentando não ter tido a ideia antes, logo tratou de ridicularizar o colega. Alegaram com ironia que seria necessária uma lei complementar destinada a impedir que nos limites do território municipal se acendesse fósforo, ligasse o fogão ou mesmo pitasse um cigarrinho, atitudes inocentes, mas capazes de incendiar a cidade. Sem falar no perigo, que não lhes ocorreu, mas que eu não deixei passar em branco, de alguns cidadãos mais chegados a um trago irem para rua e, de boca aberta para o céu, se fartarem de graça com um produto que só pagando conseguiam adquirir nos bares e supermercados. E se as esposas ralhassem ao vê-los chegar em casa tropeçando, alegariam que, tendo esquecido o guarda-chuva em casa, apanharam o maior temporal ao sair do trabalho.

Muitos riram da boa intenção do vereador, outros alegaram, talvez com razão, que bem melhor seria combater o inimigo com as armas da ciência, e não com propostas pé de cana e sem pé nem cabeça. O problema é que as armas da ciência — vacinas, respiradores e camas hospitalares — andam em falta e álcool sempre se dá um jeito de achar. Também aqui em nossa cidade projetos de lei muito esquisitos de vez em quando atravessam a cabeça das autoridades. Contam os mais antigos que o aumento dos preços dos produtos hortigranjeiros era objeto dos debates na casa legislativa. A sessão corria tranquila, até que um vereador mais bem informado sobre economia tentou explicar que o fenômeno era causado pela lei da oferta e da procura. Pra quê? Imediatamente um de seus pares pediu a palavra e, indignado, propôs que lei tão nefasta aos interesses da população fosse declarada extinta em todo o território municipal.

Um outro teria discursado ardorosamente contra a lei da gravidade, ao saber que essa era a causa de tanta coisa grave que acontecia no mundo, como, por exemplo, a queda de aviões. Não chegou ao extremo de propor sua extinção, mas afirmou que opor-se a ela era obrigação de todo cidadão de bem. São talentos desse naipe que acabam dando origem a muitas piadas com os quais a população se vinga dos que a governam ou desgovernam. É o caso daquele prefeito a quem se atribui a intenção de acabar com as subidas dos morros, deixando apenas as descidas, facilitando assim a vida sobretudo dos mais pobres, da parte da população que, sem carro e sem dinheiro para pagar o ônibus, tem que subir os morros a pé.

Piada ou não, a ideia não foi avante, talvez porque tenham conseguido convencer Sua Excelência de que, embora tendo o inconveniente das subidas, os morros são um dos encantos de nossa cidade e tão acostumados estamos de tê-los ao nosso redor que sem eles nos sentiríamos mais desprotegidos e ainda mais pobres.

 

 

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Tim-tim!

quarta-feira, 07 de abril de 2021

Naquela época os egípcios tinham mesmo alguns costumes esquisitos

Naquela época os egípcios tinham mesmo alguns costumes esquisitos

Talvez você se espante com esse negócio de viagem turística à lua, quiçá a Marte. E se você se espanta também com o uso da palavra quiçá, lembre-se do famoso bolero “Siempre que te pregunto/ que, cuándo, como y dónde/ tú siempre me respondes/ quizás, quizás, quizás”. Não é preciso ser mestre doutor em espanhol para saber que o quizás deles é o nosso quiçá, e que ambos correspondem à nossa indecisa palavra talvez. Mas, admito, é palavra antiga e fora de circulação há muito tempo, que só a duras penas sobrevive nos dicionários.

Porém nada é espantoso neste mundo e neste mundo nada é novo. Muito menos a inteligência e a sabedoria humanas.  A prova disso são os egípcios. E a prova de que os egípcios antigos — e bota antigo nisso — tinham tanto inteligência quanto sabedoria, além de muito bom gosto, é que há mais de cinquenta mil anos já fabricavam cerveja. É a conclusão a que chegaram os arqueólogos que estavam procurando coisas bem diferentes num cemitério no deserto quando se depararam com uma verdadeira e completa fábrica da boa e velha cervejinha. E não se tratava de coisa pequena, era uma super-AMBEV, capaz de produzir 22.400 litros a cada rodada. Se for mentira ou exagero, é mentira e exagero das múmias ou dos arqueólogos, eu estou apenas repetindo o que li (talvez inventando um pouquinho).

Não sei se os nossos ancestrais companheiros de copo aproveitavam devida e democraticamente a bebida. Só o fato de a fábrica estar situada num cemitério já depõem um pouco contra eles, porque dessa má localização os estudiosos concluíram que a cerveja era usada nos sepultamentos do pessoal da elite. Pelo que entendi, os faraós não se deixavam sepultar sem pagar a última rodada e permitir que os convidados enchessem a cara durante a cerimônia de adeus. Pode ser até que eles, conscientes de seus pecados, levassem parte da produção consigo, para o caso de irem para “aquele lugar quente” onde, pelo que se sabe, a sede é grande.

Mas, enfim, naquela época os egípcios tinham mesmo alguns costumes esquisitos. Por exemplo: se você tivesse dois mil pedaços de ouro, o que faria? Gastaria tudo em cerveja? É uma ideia. Mas os arqueólogos acharam uma velha múmia com duas mil peças de ouro enfiadas na boca. Além de um grande desperdício, é o mais caro “cala a boca” de que se tem notícias.

Certamente vocês já observaram que eu falo da cerveja com alguma simpatia. Não observaram errado, devo confessar. Não que eu ignore quanto sofrimento e quanta tragédia o consumo de álcool tem causado, o quanto tem cobrado em lágrimas perdidas e vidas desperdiçadas. Mas acredito, e sou adepto, do uso moderado, de parar não na hora devida, mas muito antes dela. E o que os arqueólogos encontraram num cemitério da cidade de Abydo é prova de que beber é um hábito antigo, que certo ou errado, tem passado de copo em copo, através dos tempos, até os dias atuais. Saúde!

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Menina de rua (mas não tanto)

quarta-feira, 17 de março de 2021

 Não, não quero adotá-la. Se bem que, pensando bem...

 Não, não quero adotá-la. Se bem que, pensando bem...

Pede para falar comigo, vou pessoalmente ver quem é a tal Edilberta. Até que é bonitinha. Não é que eu, vinicianamente, ache que beleza é fundamental. Mas isso é a primeira coisa que a gente repara numa mulher, não me venha agora você sustentar o contrário, só porque sua patroa está presente. Convido a visitante a sentar-se e, a bem da verdade, essa é uma boa ação que pratico também com as mais feias e mesmo com os marmanjos. Não é sem motivo que certa senhora me considera “um cavalheiro de antigamente”. Pois bem, disponho-me a ouvir Edilberta, que deseja me entrevistar, visto que ela, chegada ontem de Fortaleza, já foi informada de que sou "uma pessoa muito considerada na cidade", vejam vocês, eu mesmo desconhecia esse fato glorioso a meu respeito.

 As perguntas são sobre as miudezas habituais: nome, idade, profissão. Ao item “sexo” quase me furtei a responder, porque até então eu achava que, só de olhar para mim, a pessoa já podia concluir, sem precisar de confirmação de minha parte. Enfim, “cavalheiro de antigamente”, vou respondendo na melhor forma da lei, como lá dizem nossos doutos advogados. Mas a entrevista vai ficando embaraçosa, à medida que Edilberta quer saber que nota eu daria à saúde no município, à educação no estado, à honestidade no país.

Minha avó me ensinou que peixe morre pela boca. Meu avô, talvez achando que provérbio demais também mata, ficava calado. Não chego a ser tão prudente quanto meu avô, mas também não saio por aí mordendo qualquer isca, só porque a pescadora é bonitinha. Levado por tão alta sapiência, eu é que começo a questionar a entrevistadora. E ela me conta uma história de cortar o coração das estátuas se é que estátuas têm coração. De família paupérrima em Fortaleza, escapou das drogas e da prostituição infantil (essa notável atração turística nacional) graças às senhoras caridosas que, naquela cidade, recolhem e acolhem meninas de rua. Durante alguns anos morou com as ditas senhoras, mas que, aos dezoito, precisou abrir vaga para outra deserdada que chegava.

Voltando ao interrogatório, Edilberta quer saber quem eu acho que é culpado por haver crianças de rua: a família, a sociedade ou o governo. A questão me parece muito complexa para ser reduzida a um x entre três parênteses possíveis. A caneta espera ansiosa e, já que demoro tanto, a própria entrevistadora me socorre, isentando a família.  Ainda assim, preciso decidir entre o governo e a sociedade (Edilberta e a caneta me olhando, concentradas). Mas, tão logo eu me decido por "ambos", a moça quer saber se eu adotaria uma menina de rua. Depois de rápidas reflexões religiosas, morais e filosóficas, respondo que sim. Pra quê !!!

 — O senhor me adotaria?

Edilberta me pergunta, me olhando nos olhos. Pois ora, ora! Aqui está essa moça, até bonitinha, a me propor essa questão assaz embaraçosa. Não fosse eu o já duas vezes citado “cavalheiro de antigamente”, teria dito alguma gracinha de duplo sentido. No entanto, limitei-me a perguntar (e um São Francisco que estava na moldura atrás de mim é testemunha) o que significava aquele “o senhor me adotaria?”

Pois bem, se vocês pensaram mal de Edilberta, estão enganados e terão que um dia responder, diante do próprio São Francisco, por esse mal pensamento. Porque, o que a moça tem a oferecer é, nada mais, nada menos do que “uma importantíssima obra cultural”, que vem a ser uma penca de dicionários ilustrados, receitas culinárias e as obras completas de José de Alencar. Adotar Edilberta significa comprar algumas dessas preciosidades, que “uma pessoa conceituada como o senhor não pode deixar de ter em sua casa”.

Pobre Edilberta! Lá se foi o pouco encanto que nossa conversa estava me proporcionando. Então, era apenas para me vender livros! Francamente, tem coisas que chateiam até um cavalheiro, mesmo dos de antigamente. Uma delas é vir com essa conversa de menina de rua, e depois querer nos empurrar José de Alencar e livros de culinária.

Delicadamente, aconselho Edilberta a ir bater em outra porta. Não, não quero adotá-la.
Se bem que, pensando bem...

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Vamos com calma

quarta-feira, 03 de março de 2021

Dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior

Dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior

Quem é que nunca teve um ataque de raiva? É só ler o Antigo Testamento para constatar que até Deus de vez em quando perdia a paciência com suas criaturas. Não que lhe faltassem boas razões para isso e tanto mais e melhores razões tem agora, quando os homens parecem achar que Deus não existe ou que, se existe, o problema é dEle. Pode ser que Ele esteja apenas dando um tempo à humanidade para ver se ela, por conta própria, para de fazer burrada. Mas, pelo visto, o resultado não tem sido muito bom, é só olhar para o que os homens andam fazendo uns aos outros, aos demais bichos deste mundo e à natureza. Nossa sorte é que a ira de Deus dura um triz e sua paciência dura pelos tempos eternos, in saecula saeculorum. Amém.

Sim, quem nunca viveu, ainda que uma única vezinha, esse momento em que um raio parece nos ter atingido, e tudo em volta fica vermelho, as feições se arrepiam, as mãos desatinam e a voz se desgoverna. Pudéssemos nos ver nessa hora e ficaríamos com tanta raiva de nós mesmos que jamais íamos nos permitir ficar com raiva de novo. Pena que em tais ocasiões nunca esteja por perto alguém com a calma e a coragem suficientes para colocar um espelho diante da nossa cara. Só assim veríamos o quão longe estamos de merecer o título de homo sapiens e o quão plenamente merecedores ainda somos do título de homo stupidus.

E não é por falta de conselhos. A sabedoria popular está cheia de boas recomendações que ajudam a cozinhar a cólera em fogo brando e depois deixar que ela vá esfriando por conta própria, feito panela destampada. Contar até dez ou, dependendo do tamanho do ataque, até cem ou mil é uma delas; tirar as calças pela cabeça também ajuda muito. E, no caso de a fúria se dirigir especificamente a alguém, é útil pensar contra ele as palavras mais feias, tais como onagro, sevandija, abantesma ou histrião. Pensar e calar, porque imagine as graves consequências de você, furioso, gritar ao seu interlocutor: “Você não passa de um réprobo!”  Se bem que é possível que ele reaja como aquele sujeito que, chamado de mentecapto, ficou comovido e agradeceu o elogio.

Escrever é ainda melhor, contanto que o escrito não seja enviado. Conta-se que certo general procurou Abraham Lincoln para queixar-se de um colega de farda. Após ouvir o imenso rol das acusações, o presidente recomendou que o homem lhe entregasse uma carta, registrando minuciosamente tudo o que lhe havia dito. O bravo soldado (naquele momento um soldado bravo) saiu da entrevista certo de que enérgicas medidas seriam tomadas contra seu desafeto. Dias depois, tocou no assunto com o presidente, ocasião em que foi informado de que aquela bela peça bélica e literária estava guardada, trancada e calada numa gaveta. Com espanto, o general quis saber quando afinal seus insultos chegariam aos olhos do destinatário, ao que Lincoln respondeu que, uma vez que o desabafo havia sido feito, e por escrito, o autor já devia ter esfriado a cabeça e lavado a alma. Portanto, não havia mais motivo para que a carta fosse entregue. E deu por encerrada a questão.

Acalmemo-nos, porque, pensando bem e com calma, concluiremos que dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior, tanto que tem por patrono um demônio chamado Azazel, e pelo nome já se vê que boa coisa ele não é. Além disso, a ira é, de todos os pecados, o que mais se volta contra o próximo. Nos outros seis... Só para lembrá-lo, leitor, para que você possa melhor avaliar o quanto tem pecado ultimamente, o elenco completo é o seguinte: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça. Pois bem, nos outros seis o mal se volta contra o próprio pecador, mas a tal da ira costuma ser despejada em cima de quem não tem nada com isso, às vezes estava só de passagem.

E se você conseguiu vencer a preguiça e ler esta crônica até aqui, sem ter ficado com raiva do autor, já obteve duas grandes vitórias. É só continuar se desviando dos outros cinco pecados e vai chegar ao fim do dia mais inocente que um passarinho voando no Jardim do Éden.

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Um americano maluco

quarta-feira, 03 de fevereiro de 2021

Mas depois que a boa velhinha voou para o céu, o melhor é deixá-la descansar em paz

Mas depois que a boa velhinha voou para o céu, o melhor é deixá-la descansar em paz

Embora nunca se tenha feito um levantamento científico sério, não tenho dúvida de que nos Estados Unidos está a maior concentração mundial de malucos. Afinal, os americanos são os maiorais em quase tudo, basta ver que nas calçadas de lá as pessoas têm que andar com cuidado para não esbarrar em algum ganhador do Nobel: cientistas, escritores, humanistas e mais uma fila interminável. Na última vez que vi a relação de vencedores, eles já tinham faturado o prêmio 352 vezes. O que nos consola é que até lugares que a gente nem sabia que existiam e muito menos que fossem países já alcançaram essa glória. É o caso de Santa Lúcia, que para mim não passava de uma clínica psiquiátrica, mas já faturou duas vezes (Literatura e Ciências Econômicas). Ainda há esperanças para o Brasil!

Apesar de ser tão importante e entregar aos contemplados uma grana preta (na verdade, nas cores do Euro), o prêmio não deixou de ser esnobado. Foi o que fez Lê Dúc Thou, do Vietname, que, tendo sido o Nobel da Paz em 1973, pediu que o deixassem em paz e não estendeu a casaca para receber a medalha nem a mão para pegar o dinheiro.

Os dados sobre os americanos, porém, são sempre superlativos. Certa vez li que se o resto do mundo comesse a mesma quantidade dos ianques a fome se alastraria (ainda mais!) pelo mundo. Se comparado, por exemplo, com um indiano, cada sobrinho do Tio Sam consome vinte vezes mais de tudo: água, eletricidade, papel higiênico e remédio, sem falar no uísque e provavelmente na cocaína. Portanto, não é de se estranhar e que, ao contrário, seja muito lógico que entre eles esteja a maior população de malucos do planeta. Para comprovar a tese, lembro o caso do sujeito que recentemente foi preso no Tenesse por estar arrobando túmulos num cemitério.

A coisa em si já é bastante doida, e ainda mais se agrava pelo motivo apresentado pelo arrombador. No fundo, um motivo muito nobre. Ele não estava arrancando dentes de ouro, nem profanando cadáveres, nem procurando algum Rolex que tivessem deixado cair no caixão na hora do sepultamento. Visto por um vigia noturno, o sujeito foi preso. Na delegacia, alegou que pretendia — simplesmente pretendia — ressuscitar a avó. Vejam vocês! Eu sempre soube que as avós fazem parte dos melhores momentos de nossa vida e, quando elas se vão, ficam para sempre entre as nossas mais doces lembranças. É só a gente pegar o álbum de fotografias ou, se você é mais jovem, o arquivo de fotos do celular para ver que não há momento algum de sua felicidade em que elas não estejam presentes, sorrindo na fotografia. Sim, amar a avó é compreensível e elogiável.  Elas merecem.  Mas depois que a boa velhinha voou para o céu, o melhor é deixá-la descansar em paz.

Ainda não está bem claro para que esse madman pretendia tirar a vovozinha do sono eterno. Talvez para pedir melhora na mesada, talvez para reclamar da pequena parte que lhe coube na herança, talvez para implorar perdão por alguma falta cometida. Fosse qual fosse o motivo, não creio que ela pudesse atendê-lo. Até porque, se lhe perguntassem se queria voltar ao mundo dos vivos, provavelmente ela, com a sabedoria que só os mortos podem ter, responderia citando o poeta baiano Leminski:

Vida e morte / amor e dúvida / dor e sorte / quem for louco / que volte.

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Mortos muito vivos

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Teoria por teoria, essa é tão boa quanto outra qualquer

Teoria por teoria, essa é tão boa quanto outra qualquer

Há muitos mistérios neste mundo e de nada devemos duvidar. Por exemplo, até recentemente os portugueses esperavam sentados pela volta do rei D. Sebastião, que nunca voltou, pela singela razão de que havia morrido em 1578, na África, onde fora se meter em guerra contra os mouros.  Rei e órfão desde o ventre materno, morreu sem deixar herdeiros, e órfã deixou a nação portuguesa. Como seu corpo nunca foi achado, desse defunto insepulto nasceu o Sebastianismo, crença de que o rei voltaria para governar e engrandecer a pátria. Creio que, passadas algumas centenas de anos, mesmo os mais ferrenhos monarquistas lusitanos já desistiram de esperar por esse rei que, de bom mesmo, só fez autorizar a criação da Cidade Maravilhosa. Bem, foi mais ou menos isso que aprendi na minha longínqua oitava série.

Elvis Presley é outro que continua vivo mesmo depois de ter morrido. E não estou falando em sentido figurado: é vivo mesmo, ou pelo menos assim pensa muita gente mundo afora. Recentemente apareceu a foto de um senhor gorducho, de vasta cabeleira branca, que, para muitos, não é outro senão o Rei do Rock, agora trabalhando como jardineiro — vejam vocês o que é a vida e quão passageiras são as glórias deste mundo! Isso depois de ter fugido para a Argentina, de ter atuado como coadjuvante no filme Esqueceram de Mim e de ter sido abduzido por uma nave espacial. Ou seja, pode estar cuidando de jardins, cantando tango em casa de shows, ou ensinando marcianos a tocar violão e requebrar.  Mas a maior prova de que Elvis não morreu em 1977 é a declaração de uma confiável senhora americana para quem o próprio telefonou recentemente, para dar notícias e informar que estava passando bem. Não há por que duvidar.

Com certeza também não faltará quem ache que Michael Jackson anda escondido em algum lugar por aí, preparando uma nova turnê, ou talvez administrando uma barraca no Mercado Modelo de Salvador. E não é de todo impossível que Frank Sinatra tenha sido visto de sarongue, torcendo pela Mangueira no Carnaval carioca de 2019. (Pelos exemplos citados, já se viu que são os artistas americanos os que mais sobrevivem ao próprio caixão).

Quem parece que morreu mesmo foi o pessoal que teve o azar de, no dia 14 de abril de 1912, estar a bordo do Titanic, embora nele ou dele não tenha morrido ninguém. Explico: segundo uma das centenas de teorias da conspiração que rolam pelo mundo, o navio que afundou foi outro, um tal de Olympic. Os dois pertenciam à mesma empresa e o Olympic já estava meio ferrado, por causa de um acidente. Há quem acredite que um diretor da empresa teve então a brilhante ideia de despachar o Olympic no lugar do Titanic, cujo falso afundamento resultaria numa indenização muito maior.

O problema foi que o suposto Titanic afundou antes da hora combinada, e o socorro que estava planejado não chegou a tempo de recolher os náufragos. Ou seja: o Titanic só afundou de mentirinha, mas quem morreu, morreu de verdade. Talvez a história não seja bem assim, que eu não sou especialista em teorias da conspiração. Mas, teoria por teoria, essa é tão boa quanto outra qualquer. E se você, leitor, se interessa pela pura verdade dos mais falsos acontecimentos, não faltará um livro ou um filme para contar uma versão que mais lhe agrade.

Enfim, há muitas e diferentes mortes, e uns morrem mais do que outros. O melhor que fazemos é ir cuidando da nossa própria vida enquanto podemos, até que chegue a hora em que também o nosso navio vá para o fundo oceano do esquecimento, e não haja qualquer teoria que, falsa ou verdadeira, nos traga de novo à vida.

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Eles e nós

quarta-feira, 06 de janeiro de 2021

Como atiram mal policiais e bandidos americanos!

Como atiram mal policiais e bandidos americanos!

Não é desfazer dos nossos, mas presidentes cinematográficos são os americanos. É só assistir a dois ou três filmes de aventura para chegar a essa conclusão. Tem filme em que The President entra no Number One e parte para enfrentar terroristas ou alienígenas só com a cara e a coragem e o apoio da plateia. De fato, não demora muito e os céus se enchem de explosões, enquanto, ao som de alguma música triunfante, o herói volta para a Terra, onde o esperam os aplausos de seus compatriotas e o abraço da primeira-dama. Tem filme em que potências estrangeiras armam longos planos para matar o homem e, na hora agá, um segurança se mete entre a bala fatal e o peito presidencial, o qual sai de cena com uma rapidez de fazer inveja a Usain Bolt. Terrorista se dão ao trabalho de passar anos planejando uma cilada, subornando seguranças e se infiltrando entre os convidados para o baile na Casa Branca. E, nos dez minutos finais da história, acabam descobertos por um faxineiro distraído ou por uma humilde secretária.

Mas também há coisas em que eles são piores do que nós. Novamente podemos encontrar comprovação nos filmes. Quantos filmes você já viu em que os bandidos — presos com justiça —, ou o mocinho — injustamente preso —fazem o maior sacrifício para escapar da prisão? É tanto cavar túneis, arrombar paredes e pular muros que metade da sessão se gasta nessa trabalheira. Método também muito usado e bem mais prático é atrair o guarda para perto da cela e dar-lhe uma gravata mortal. Depois, é acomodar-se na sela de um cavalo que estava dando bobeira do lado de fora ou ligar o carro que algum descuidado tinha deixado ali por perto, com a chave na ignição e tudo mais. E aí, basta desviar-se dos tiros e ganhar o mundo. Aliás, como atiram mal policiais e bandidos americanos! Quatro ou cinco deles descarregam suas metralhadoras contra o fugitivo e nenhuma bala o atinge, nem de raspão. Já o carro, coitado, fica mais furado do que uma peneira, se me permitem usar essa expressão antiga. Mas, se é o mocinho que está fugindo, basta que ele dê um tiro para trás e dois ou três dos seus perseguidores vão direto para o céu — se é que existe céu para bandidos.

Quanto aos nossos bandidos... é outro nível. Nem precisam sair da prisão, porque de lá mesmo tocam seus negócios, por meio de celulares ou pombos-correios. E caso resolvam arejar as ideias ou rever os amigos, saem pela porta da frente, geralmente por descuido de quem os vigiava e que depois exclama, sinceramente surpreso: “Mas ele tava aí ainda agorinha! Como é que esse cara sumiu assim no de repente?!” E, no caso extremo de um ou mais presos precisarem cavar um túnel para ver o sol lá fora, ninguém vai aborrecê-los, querendo impedir a conclusão da obra.

A política é outra atividade em que estamos à frente dos americanos. Com toda a tecnologia que têm, eles levam semanas para saber quem ganhou a eleição. Pior ainda: nem sempre é o mais votado que leva.  Aconteceu com Hilary Clinton, aconteceu com Al Gore, que ganharam nas urnas, mas perderam no Colégio Eleitoral. Nós, não. Nós sempre damos posse ao mais votado, embora frequentemente o tiremos do cargo antes da hora. Mas no mesmo dia da eleição, à noitinha, ficamos sabendo quem vai nos governar. E até houve uma época em que, com meses de antecedência, o povo era informado de quem tinha vencido a eleição, e por acaso era sempre um general.

Eles têm suas virtudes e seus defeitos, nós temos nossos defeitos e nossas virtudes. A diferença é que nós os adoramos ingenuamente, e eles solenemente nos ignoram.

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Os mascarados

quarta-feira, 02 de dezembro de 2020

É ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso

É ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso

Os mais moços talvez não conheçam a palavra nesse sentido, mas ela sobrevive nos dicionários, ainda que em estado vegetativo. Está lá no Michaelis: “Mascarado: Diz-se de ou indivíduo ou profissional muito convencido ou presunçoso”. De fato, quando antigamente se queria acusar alguém de vaidoso, pretensioso, metido a besta, podia-se dizer, por exemplo: "Bom jogador, mas muito mascarado", ou "Além de burro, é mascarado". Isso era no tempo da televisão à lenha, coisa muito antiga. Tempo em que bandido usava máscara, preferindo ser um cidadão anônimo e atuando sobretudo à noite. Atualmente eles querem mais é ser conhecidos e reconhecidos, não têm mais horário certo, atacam 24 horas por dia e de cara limpa, nem ligam para as câmeras que gravam suas ações, às vezes até dão adeusinho para elas.

Mas nem foram os bandidos que me lembraram do antigo uso do adjetivo mascarado. Para falar a verdade, foi um acontecimento honesto e banal. Estava eu caminhando quando uma senhora me cumprimentou com grande familiaridade. Não tinha dúvida: ali estava uma velha conhecida, conhecimento que lhe permitia, sem faltar com a boa educação, interromper o caminhante que ia absorto em seus pensamentos — graves ou insignificantes — para dois dedos de prosa matinal. Mais ou menos bem educado que sou, não deixei de levar a conversa adiante, a qual se encerrou com mútuas declarações de alegria pelo encontro.

Meu problema começou dois passos adiante: quem era aquela senhora tão atenciosa? Lembrei-me até de uns versinhos que ando repetindo há anos, sem saber se são meus ou se os copiei de alguém: "Vi meu amigo de longe, / ele também me reconheceu. / Quando nos aproximamos, / eu vi que não era ele, / ele viu que não era eu". Estivesse ela sem máscara, e provavelmente eu a teria identificado, ou pelo menos reduzido a variedade de tempos e espaços em que nos teríamos conhecido: no trabalho, na vizinhança, numa festa, num funeral? Mas assim, com metade do rosto escondido, era apenas um vulto, uma voz, um punhado de gestos. Nada suficiente para que eu lhe desse um nome, uma personalidade, enfim, uma identidade.

A pandemia do coronavírus, de tantas e tão trágicas consequências, tem, pelo menos para mim, essa gravidade adicional: dificulta a identificação das pessoas. Não que antes eu fosse capaz de reconhecer todo mundo com rapidez e precisão. Muitas e muitas vezes cumprimentei estranhos e em tantas outras passei por amigos como se nunca os tivesse visto (talvez por isso, quem sabe, alguém já tenha me chamado de mascarado). Mas agora o problema se complicou muito. Obrigados a andar somente com meia cara de fora para não contrairmos o vírus ou para não transmiti-los aos outros, ficamos todos meio irreconhecíveis.

Sim, a máscara é necessária e bem merece ser chamado de mascarado quem não a usa. Mas tem seus efeitos colaterais, alguns bons, outros ruins. De ruim tem isso de não sabermos a quem estamos cumprimentando ou quem está acenando para nós. Às vezes também oculta o rosto de uma moça bonita ou de uma criança alegre. Mas é ela que nos protege contra esse bichinho que tão cruelmente ataca a humanidade. E é ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso, durante uma caminhada matinal.

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Questão de fé

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado

Tem horas em que a gente, por mais boa vontade que tenha, se cansa dessa tal de espécie humana. Não raramente concluímos que, tirando nós mesmos, nossos parentes e alguns poucos amigos, a humanidade não passa de um punhado de pessoas imprestáveis, pra não dizer francamente desprezíveis. Verdade que a espécie humana está pouco se lixando para a nossa opinião, mas isso não nos impede da falar mal dela (como se dela não fizéssemos parte).

Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado

Tem horas em que a gente, por mais boa vontade que tenha, se cansa dessa tal de espécie humana. Não raramente concluímos que, tirando nós mesmos, nossos parentes e alguns poucos amigos, a humanidade não passa de um punhado de pessoas imprestáveis, pra não dizer francamente desprezíveis. Verdade que a espécie humana está pouco se lixando para a nossa opinião, mas isso não nos impede da falar mal dela (como se dela não fizéssemos parte).

Apesar disso, de vez em quando constatamos que ainda há neste mundo muitos corações generosos. Gente que nunca ouviu falar em nós e nem desconfia de nossa existência e que, no entanto, vive pensando em nós e por nossa causa morre de preocupação. Por exemplo: há poucos dias recebi uma mensagem de uma dessas almas caridosas (para as quais desde já as portas dos céus se encontram abertas) me oferecendo uma pulseira que cura todas as dores musculares. Ou, pelo menos, todas aquelas que me afligem e muitas outras das quais eu mesmo nem desconfiava que sofria.

São tais as maravilhas da dita pulseira que até pensei em voltar aos meus tempos de atleta, atividade que abandonei há tantos anos, para o bem do meu joelho e do futebol nacional. Pois fui daqueles jogadores que chutam a bola na direção que o nariz aponta, sendo que, no meu caso, frequentemente essa direção era a do gol da minha própria equipe. Em virtude do que, dei muita volta olímpica nos gramados, correndo tanto quanto possível à frente de nossos goalkeepers. Também isso contribuiu para que eu abandonasse a bola em favor das letras, atividade esta em que acabei me revelando tão genial quanto nos campos de futebol.

Contudo, houvesse nos meus tempos de lateral esquerdo a milagrosa pulseira de que ora vos falo, bem outra poderia ter sido a minha história. Porque essa grande contribuição da ciência brasileira aos atletas de todas as modalidades e nacionalidades significa o fim dos sofrimentos físicos que a prática esportiva costuma acarretar. E não só a prática esportiva, mas também as mais comezinhas das ações humanas, tais como subir escada ou correr da polícia. E se o prezado leitor também padece de algum desconforto na região situada entre o dedão do pé e a raiz do cabelo, deve logo se informar sobre o assunto, pois o uso desse maravilhoso invento da ciência brasileira elimina desde torcicolo a unha encravada. Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado.

Não sejamos tão crédulos quanto aquele soldado americano que, ao voltar ao seu país depois de anos de ausência, encontrou em casa um recém-nascido. Tendo a esposa lhe garantido que engravidara pensando nele enquanto assistia a filmes pornográficos, o bravo guerreiro tanto acreditou que até transmitiu ao bebê o seu próprio nome, acrescido de Júnior. Mas também não sejamos desconfiados demais. A pulseira mágica pode não curar coisa nenhuma, não tendo outra vantagem além de botar dinheiro no bolso do espertalhão que a está vendendo. Mas quantos males e quantas dores não deixaram de existir em doentes que só tomaram placebo ou ouviram do médico de confiança: “Isso não é nada, rapaz!”

O que me lembra da velha história do sujeito que recebeu de um amigo chegado da Terra Santa uma lasca da madeira da Cruz de Cristo, lasca que, por sinal, o dito amigo tinha arrancado naquele mesmo dia de uma árvore do quintal de sua casa. Pois o doente ficou rapidamente curado de várias moléstias, algumas das quais já vinham pesando em suas costas há longos anos. Esse é o episódio que explica e justifica o antigo ditado segundo o qual “mais cura a fé do que o pau da cruz”.

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Entre João Vaine e Jon Eine

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Talvez porque também a professora fosse adepta das santas soluções average

Talvez porque também a professora fosse adepta das santas soluções average

Não é pra me gabar, não, mas o fato é que falo inglês desde minha longínqua adolescência. Eu atuava de lateral esquerdo e era um dos mais famosos atletas do bairro, sobretudo pela minha capacidade de chutar a bola em qualquer direção. Graças a esse dom, devo ter feito mais gols contra do que Pelé a favor. E foi praticando o esporte de Charles Miller que tive meus primeiros contatos com a língua inglesa, então predominante no futebol brasileiro. Eis que no meu tempo da afamado lateral esquerdo uma palavra gozava de especial prestígio, provavelmente porque a compreensão que tínhamos sobre o que ela significava era mais ou menos a mesma que tínhamos da Física Quântica. E o mais bonito é que a pronunciávamos exatamente como a víamos escrita no Jornal dos Sports: a-ve-ra-ge.

Muita briga se deu nos campos de pelada por causa do tal “goal average”. Frequentemente a equipe que perdia uma competição se dizia campeã pelo critério do “goal average”. Era quase uma senha para que técnicos e diretores invadissem o gramado (sem grama, mas com muita poeira ou lama) e o empurra-empurra começasse. Mas geralmente se chegava a um acordo, e os dois times dividiam o título: um campeão pelas pontos obtidos e outro, pelo “goal average”.

Sabendo que se tratava de uma palavra estrangeira, o que lhe dava grande autoridade, também os adultos logo compreenderam a importância de usá-la nas questões do dia a dia. Por exemplo: marido e mulher brigavam. Um vizinho mais solícito ia reconciliar os dois e já chegava dizendo: “Vamos resolver isso no average”. Diante de palavra tão poderosa, dificilmente a briga continuava. E foi por meio dela que dei o meu primeiro passo no idioma que Donald Trump usa para enaltecer os Estados Unidos e esculhambar o resto do mundo, principalmente a parte latina, latrina e latida, coisas que para ele têm pouca ou nenhuma diferença.

Mas nem só de average vivíamos nós. Nosso inglês ia muito além. Lembro-me que fomos ver um faroeste e o mocinho era um sujeito alto e meio desengonçado. A discussão pós-filme foi sobre como falar o nome do artista. Era quase unânime a opinião de que o homem se chamava João Vaine, mas não faltaram dois ou três sabidos que insistiam em falar Jon Eine. Até pensamos em consultar os mais velhos, mas desistimos ao lembrar que provavelmente eles diriam que “de acordo com o average”, as duas pronúncias podiam ser aceitas. Um dos nossos, mais adiantado na escola, pediu a opinião de um professor, mas não conseguiu guardar a resposta na cabeça e acabou optando por Joel Eine, que não estava previsto.

Assim, de degrau em degrau, ou mais propriamente step by step, tentei subir no inglês, mas, para falar a verdade, até hoje estou no começo da escada.  E ainda não sei como se pronuncia ou o que significa average (cartas para a redação, caso tenha aí algum leitor que não seja como eu semianalfabeto em inglês). Na faculdade, iniciei o curso de Letras na esperança de que a professora de Língua Estrangeira fosse surda (não era). Mas felizmente era compreensiva e deixava para mim a pergunta mais fácil da lição. Na décima vez que ela perguntou What´s your name?, vacilei um pouco, mas resolvi arriscar. Quando pronunciei o nome pelo qual toda a turma me conhecia, houve um alívio na sala. No fim das contas, acabei sendo aprovado e pegando meu canudo de papel, como diria o Martinho da Vila. Até hoje não sei como consegui isso. Talvez porque também a professora fosse adepta das santas soluções average.

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