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As estátuas decepadas

Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
Eu gostaria que os eventuais leitores da crônica de hoje tivessem lido a do dia sete deste mês, na qual explico por que estou republicando texto tão antigo, tão estranho ao que atualmente escrevo e sobre um assunto que os friburguenses mais idosos já esqueceram e que os mais jovens nem sequer chegaram a conhecer.
As estátuas decepadas
Alguém um pouco mais louco do que nós, mortais comuns, investiu contra as figuras de mármore que, na praça, simbolizavam as quatro estações do ano, e feriu-as de morte. Elas eram o que de mais belo havia nos apagados jardins de gramas secas e flores descoradas. Mas, principalmente, eram elas que nos lembravam a todo instante que tudo muda, que as flores morrem porque o sol as abrasa no seu desvairado desejo de brilhar, que os frutos caem porque chega o frio.
Tudo passa. O dia vai depressa e não damos conta de nossos múltiplos e multiplicados compromissos; a semana some e não podemos encontrar o amigo, nem podemos nos encontrar (ai de nós, tão perdidos de nós mesmos!); o mês voa e não temos tempo de deixar a amada descobrir o quanto é amada, nem acariciar os cabelos das crianças. A primavera acaba, acaba o verão, o outono acaba, acaba o inverno e não descobrimos a felicidade, não isolamos a alma do frio, não aquecemos o coração inquieto, não contemplamos as flores que ainda conseguiram brotar, nem provamos o fruto que mais desejávamos. Tudo passa muito depressa. A vida passa muito depressa.
As figuras imóveis no jardim olhavam-nos com pétrea complacência: os velhos aposentados que liam o jornal e carregavam pesadas horas de enfado; as crianças que corriam e gritavam ao irem para a escola; os namorados que passavam de mãos dadas e furtivamente se beijavam sob o olhar mudo das quatro estações. Então alguém, cegado pela noite interior do seu mundo insondável, apanhou-as indefesas dentro da madrugada e decepou-as com a força de sua loucura e a violência de suas mãos.
E nós, que não sentíamos a beleza das estátuas, descobrimos na manhã seguinte que nossa cidade estava menos habitável, que nossa vida estava mais vazia, que nós estávamos mais pobres. As estátuas eram nossas e, nelas, a beleza foi ferida. E cada vez que a beleza do mundo diminui, cada um de nós fica mais feio e mutilado. Com seus pés corroídos, seus dedos quebrados, seus ventres marcados, seus seios incompletos, ostentavam o encanto das coisas sofridas, que só as coisas sofridas atingem a plenitude de sua graça e de seu encantamento. Nosso pobre Dom Quixote às avessas lançou-se contra elas, talvez porque elas, ao contrário dos moinhos de vento, não acenassem para outra visão do mundo e não o olhassem senão com indiferença, cansadas de contemplar tantas formas de loucura no desfile diário pela praça.
E o mais triste é que estamos nos acostumando às imagens decapitadas, e o vazio de suas cabeças passa a integrar-se à paisagem. É como se elas sempre se encolhessem ou despissem, oferecessem flores e frutos, assim mesmo, como nós mesmos muitas vezes o fazemos na vida, sem olhos para ver a quem, sem boca para dizer por que, sem cabeça para entender o mundo. Nós também decapitados, quase sempre sem o sentirmos e mais infelizes ainda quando temos consciência disso.
Restaurarão as estátuas? Ó, vós, governantes do dinheiro (do povo) que compra o mármore, que move a mão do escultor, que ressuscita as estátuas mortas, restaurai as estações do ano! Nada perdeis e fazeis um grande bem a todos que sabiam amar as frias presenças, que achavam nas velhas figuras a graça sempre renovada e o calor sempre repetido das coisas que fazem parte de nós sem que o saibamos.

Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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