Voo para o infinito

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Carros são varejistas da morte; aviões, atacadistas

Com certeza vocês tomaram conhecimento do desastre aéreo que matou duzentas e noventa pessoas na Índia. Isso é muito triste, nem dá para imaginar o sofrimento de quem perdeu, de forma tão inesperada, alguém a quem amava. Às vezes, no mesmo acidente, mais de uma pessoa amada. Embarcaram para Londres e voaram para o infinito. Ou foram atingidos em terra mesmo: a morte pousou sobre eles quando estavam com os pés solidamente plantados no chão. Muito triste, mas não surpreendente. Os aviões são muito seguros, morre mais gente nas estradas do que nos ares, o lugar onde mais se morre é na cama, etc., etc., etc. O problema é que o avião, quando cai, não costuma deixar ninguém para contar como foi. Carros são varejistas da morte; aviões, atacadistas.

O espantoso é que havia duzentas e quarenta e duas pessoas a bordo. Ou seja, uma escapou. Isso, sim, é extraordinário. Por que um foi poupado, que anjo abriu as asas sobre Vishwakumar Ramesh no momento em que tudo em volta explodia e queimava? Milagres, mistérios, acasos que nunca chegaremos a compreender. Compreenderemos, talvez, quando tudo terminar também para nós, quando finalmente chegar aquela que Manuel Bandeira chamou de “a Indesejada das gentes”. Essa sempre vem, pois, como disse Dag Hammarskjöld, “Não procure a morte, ela o encontrará.”

Ninguém morre na véspera, ensina o ditado popular, com a sabedoria comum aos axiomas que saem da boca do povo. Um rapaz perdeu o fatídico voo indiano porque o trânsito o atrasou. “Maldito trânsito!”, deve ele ter praguejado antes. “Bendito trânsito!”, deve ele ter agradecido depois. Quantas vezes não ouvimos dizer “salvou-se por um triz”? Mesmo sem saber o que significa triz, entendemos que foi por muito pouco, foi um quase nada que desviou a bala, que parou o carro, que evitou o tombo fatal.

Na verdade, vivemos por um triz. Vai alguém caminhando pela calçada e, sem mais avisos, o coração diz “cansei!” e interrompe definitivamente a caminhada. Dormimos sem ter certeza de que acordaremos, acordamos sem saber se alcançaremos o fim do dia. Embarcamos e talvez não cheguemos aos braços de quem nos espera. E, como se a morte não ceifasse por conta própria, os homens inventam meios de ajudá-la, cultivando ódios, inventando guerras, semeando violência no dia a dia.

Mas vamos amenizar a conversa. Porque a vida, embora tão frágil, ainda “vale a pena se a alma não é pequena”. Além do mais, viver pensando na dolorosa realidade que nos cerca é ir morrendo aos poucos, e de que nos adianta isso? Se prestarmos bem atenção, veremos que por todo lado há coisas boas acontecendo. Somadas, elas certamente são maiores do que todas as más notícias que nos atingem. Não fechemos os olhos aos aviões que caem, mas não deixemos de olhar, com intensidade ainda maior, os lírios nos campos e as aves no céu. 

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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