Blog de terezamalcher_17966

Entre passes e palavras

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Lendo crônicas de vários autores, eu me deparei com duas publicadas no Jornal do Brasil há mais de cinquenta anos, que, para mim, são verdadeiros cursos literários neste estilo. A crônica, nas mãos de um hábil escritor, tem o poder de penetrar nos meandros da vida com tamanha competência que chega a tornar surpreendente o mais simples fato quotidiano.

Lendo crônicas de vários autores, eu me deparei com duas publicadas no Jornal do Brasil há mais de cinquenta anos, que, para mim, são verdadeiros cursos literários neste estilo. A crônica, nas mãos de um hábil escritor, tem o poder de penetrar nos meandros da vida com tamanha competência que chega a tornar surpreendente o mais simples fato quotidiano.

Pois bem. A troca de crônicas entre Clarice Linspector e Armando Nogueira são verdadeiras obras-primas. Clarice guardava admiração pelo modo “tão bonito de escrever” do comentarista de futebol e desafia-o a escapar das palavras sobre as batalhas armadas nos campos e fugir para os arados da vida. Foi uma proposta inconveniente que sucedeu depois que soube que ele dizia: “De bom grado eu trocaria a vitória de meu time num grande jogo por uma crônica”. E, tornou-se mais efusiva ainda quando soube que Armando trocaria uma grande partida por uma crônica dela sobre futebol. Ora, Clarice, amante de futebol? Botafoguense! Considerou-se uma pobre desventurada e intitulou assim a crônica de 30/03/1968: “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada”. Com maestria declarou seu drama: além de ter uma “ignorância apaixonada por futebol”, era mãe de botafoguense e de flamenguista. Sentia-se, portanto, a coitada que guardava a esperança de um dia entender de futebol.

Não posso considerá-la assim! Vejo alegria nos torcedores, mesmo que sofredores, ao perceber bolas de futebol correndo em suas veias, dando-lhes animação e esperança. Ah, o futebol é um esporte interminável. Popular, acima de tudo. De uma partida, vem outra, mais tantos embates depois e, assim, os dias do povo são preenchidos com lágrimas e risos, conversas e debates acirrados. Já estou eu, aqui metendo bedelhos nas palavras de Clarice Linspector, craque da literatura brasileira.

E, dias depois deste desafio avassalador, em 08/04/1968, vem as palavras de Armando Nogueira na crônica “Na grande área”, como uma “terna vingança”, ante às palavras de Clarice que o desafiam a “perder o pudor”. Afinal de contas, ler a crônica de um comentarista de futebol sobre a vida é um acinte a qualquer torcedor. É pior do que fugir da raia.

As palavras empregadas “Na grande área” é um colar de pérolas. De início ele se revela um péssimo jogador, querendo dizer que escreve com penas de ganso para superar essa dificuldade bestial para quem tem “bolas de ferro” nos pés. A seguir, vai descortinando o que pensa da própria vida, definindo-a como “um match-treino sem placar, sem juiz, nem multidão”.  Ele, ao sofrer com a imprecisão dos seus chutes, faz da sua vida um grande aprendizado.

Que belos e despudorados textos, cheios de sabedoria. Vale a pena guardá-los na cabeceira para compreender que “o grito que glorifica o goleador é o mesmo que mortifica o goleiro”. Ou seja, com placar empatado, todo jogo termina em paz. É, desta forma, que ele queria findar. E eu também.  

 

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Quando as vozes da ciência e da literatura se entrelaçam

segunda-feira, 03 de agosto de 2020

Estava pensando, no início desta semana, que, nesta coluna, tenho abordado apenas alguns estilos, como o conto, a crônica e a poesia, ficando limitada a uma parte do universo literário. Hoje, vou me dedicar ao entrelaçamento entre as vozes da ciência e da literatura. 

Estava pensando, no início desta semana, que, nesta coluna, tenho abordado apenas alguns estilos, como o conto, a crônica e a poesia, ficando limitada a uma parte do universo literário. Hoje, vou me dedicar ao entrelaçamento entre as vozes da ciência e da literatura. 

A literatura oferece subsídios à atividade científica em suas diferentes áreas, como humanas, biológicas e tecnológicas, responsáveis pela construção de saberes que envolvem as relações do homem com o mundo. A ciência não é constituída pelo saber empírico, adquirido naturalmente nas experiências diárias, mesmo estando na vida quotidiana as motivações essenciais à sua estruturação. A ciência está pautada no conhecimento adquirido através de objetivos e métodos específicos, tendo a finalidade de explicar objetivamente a realidade para proteger e melhorar a qualidade de vida dos seres. 

As áreas do conhecimento possuem enfoques especiais e utilizam-se da literatura para registrar a produção e a atualização do saber, construídos através de estudos e pesquisas válidos. São conhecimentos que precisam ser difundidos para que as ciências atendam às necessidades humanas. 

Surge, então, neste aspecto, um desafio: como adequar a linguagem científica aos grupos distintos de cidadãos, inseridos em ambientes culturais próprios. É necessário que todos, sejam crianças, adultos ou idosos, tenham acesso, por exemplo, ao conhecimento produzido pela ciência odontológica. 

 Os manuais de saúde, mesmo sendo elaborados com intuitos pedagógicos, precisam recorrer à arte literária para atraírem as pessoas, envolvendo-as nos assuntos que os justificam. Ah, não é uma tarefa fácil. Jamais podem ser “ameaçadores”, nem conterem informações equivocadas. Muito menos desconsiderarem a inteligência daquele que tem facilidade de acesso a informações de pouca utilidade. Como falar sobre os cuidados dentários com citadinos e indígenas? Certamente, o escritor terá de se utilizar de padrões de linguagem especiais para cada grupo de leitores.      

Podemos considerar a transposição da linguagem científica e acadêmica, para a coloquial uma viagem estilosa e delicada, capaz de tocar o leitor a ponto de prender sua atenção, estimulá-lo a rever e modificar seus hábitos. Estou querendo dizer que as vozes da ciência estão para transformar modos de ser e fazer da população. São para evitar a estagnação do sujeito em hábitos inadequados, já enraizados.  

 

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O mais notável dos equilibristas

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Suponho que os poetas, repentinamente, sejam tomados pelos mais arrebatadores sentimentos ante os mínimos detalhes, não mais do que pormenores que compõem uma situação, não percebidos pela maioria das pessoas, como o orvalho que escorrega na folha da árvore e cai na calçada de cimento. Mas para o poeta, são de tal forma evidentes que passam a ocupar posição de destaque no ambiente, tornando-se relevantes ao mais simples olhar. Por ter tamanha sensibilidade, o compositor de versos não precisa de lentes de aumento, apenas de sentir-se vivo. Acordado.

Suponho que os poetas, repentinamente, sejam tomados pelos mais arrebatadores sentimentos ante os mínimos detalhes, não mais do que pormenores que compõem uma situação, não percebidos pela maioria das pessoas, como o orvalho que escorrega na folha da árvore e cai na calçada de cimento. Mas para o poeta, são de tal forma evidentes que passam a ocupar posição de destaque no ambiente, tornando-se relevantes ao mais simples olhar. Por ter tamanha sensibilidade, o compositor de versos não precisa de lentes de aumento, apenas de sentir-se vivo. Acordado. Às vezes, num relance, é capaz de perceber a totalidade de uma emoção ou de uma dor, que seja até mesmo de um ser bruto, como a montanha, que, para ele, chora ao ser queimada e sorri quando a chuva umedece sua mata. É a pessoa que têm inteireza para vivenciar os momentos, sendo reativos aos mais triviais acontecimentos. Sua alma brota em seus poros como uma energia divina, carregada de sabedoria infinita. 

Mas se todos fossem poetas? Se habitassem em cada esquina, como seria a vida? Acredito que a essência das pessoas seria mais bem considerada. Ou será que haveria uma população de alienados? Afinal de contas, o mundo está calcado em cifras, não há como relutar contra esta premissa. É soberana. Já cheguei até a escutar que o dinheiro é tão essencial quanto o oxigênio. O que se faz sem moedas nos bancos e nos bolsos? Sem dinheiro, realmente, nada se faz. Mas sem poesia tudo continua a fluir. Esta constatação me é sinistra. Pior. O poeta não sobrevive da sua poesia! Precisa trabalhar para pagar suas contas, gastos quotidianos e realizar sonhos. Ah, ele mais sabe olhar para dentro de si e penetrar na alma de outro do que para a materialidade do mundo exterior. Que mais goste de ler do que lidar com os números dos extratos bancários.

Reinner Maria Rilke considerou que os fatos não são tão compreensíveis e explicados como se acredita, que, a qualquer momento, podem fugir às regras e tornarem-se tão extraordinários e assombrosos, que é impossível de serem descritos através de palavras. Mas, penso, que o poeta, com seus olhos de lince, consegue encontrar a palavra que penetre e desvele o mistério contido no que é silencioso e invisível em todo acontecer. Ferreira Gullar sabia disso. Catherine Beltrão também, nossa poeta, friburguense de coração.

Catherine, espantosamente, viajou dos números para as letras, dos cálculos para a poesia. Tornou-se irresistível à paixão de poetar, de vicejar com ternura e amargura sobre os momentos da vida, encontrando palavras para tocar a tênue linha entre a arte e a realidade. Transformou-se em mais uma notável equilibrista. 

Eis, então, um toque da nossa Catherine.

 

SEM PRESSA

As nuvens são eternas 

E neutras.

Sem pressa, 

Vou me esquecendo de um sorriso.

Sem pressa, 

Vou me desfazendo em ideias.

Incrível minha solidão

Passar por momentos

De tanta insensatez.

Não é que eu queira adiar

Tristezas...

Sei que o vento da noite

Anda precisando de mim.

E eu, que só preciso

De um sopro...

O contato constante

Entre pensamentos

Me provoca um cansaço total.

Imensa é a imobilidade

Deste instante.

Sem pressa, 

Pressinto e percebo

Que até o equilíbrio se consome.

 

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Entre palavras e geringonças

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Ninguém gosta de ser tomado pelo inesperado, que não tem a formalidade de chegar sem ironia. Sem avisos, costuma vir com abre-alas, cortejos e alegorias.

**

Ninguém gosta de ser tomado pelo inesperado, que não tem a formalidade de chegar sem ironia. Sem avisos, costuma vir com abre-alas, cortejos e alegorias.

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Ah, pobre de todos nós que necessitamos do computador para escrever. Somos dependentes desta geringonça, que, repentinamente, fecha a cara e resolve não funcionar. Quem é amante das letras, dificilmente tem facilidade com máquinas. Como também, tais artefatos não se preocupam com escritores, apesar de precisarem deles para ganhar espaço no mundo. Afinal de contas, quem escreve seus manuais, artigos para a mídia e outros textos importantes para a sua divulgação?

As palavras têm longevidade, versatilidade e são viajantes. Vestem-se com os mais variados figurinos e são enfeitadas com adereços inéditos, uma vez que os escritores, por serem perfeccionistas e gostarem de autenticidade, precisam até inventá-las para melhor expressarem o que pensam. Já as máquinas vivem por tempos reduzidos, rapidamente são superadas por outras mais modernas. Com toda essa pequenez de valor, são de tamanho imenso diante de uma simples palavra, sempre carregada de sentidos. Ora pois sim!, uma palavra não precisa de vitrines, nem de anúncios para mostrar o seu poder. Basta ser lida ou mesmo dita em voz baixa. Tem a humildade dos heróis.  

Por muitas razões, acredito que palavras e geringonças nunca vão se entender bem, apesar de uma depender da outra. O escritor sempre se alimentou de palavras, e, por determinação da modernidade, deixou-se enlaçar pela tecnologia. Ah, sem ela, hoje, reconheço, não teria como sobreviver. Charles Chaplin sabia muito bem disso!, ao ser engolido por uma máquina no filme Tempos Modernos, que sabiamente escreveu e produziu. Ele criou uma metáfora que mostrou o que iria acontecer com a humanidade nas próximas anos, previsão confirmada pelo astrônomo Marcele Geiser, que considerou que as máquinas fazem parte, cada vez mais, do corpo humano, completando-o ao engrandecer ou recuperar suas capacidades.

 Os computadores, para os escritores, são prolongamentos mecânicos das mãos, substituindo-as no ato de escrever; da memória, guardando produções, ideias e projetos; da comunicação, facilitando a interação com o mundo; da pesquisa, possibilitando o acesso com as mais diferentes fontes de informação. É uma relação que por tanto ampliar as oportunidades de realização e de diálogo, que se transformou em objeto pessoal e intransferível.

Há ainda outra questão essencial. Há escritores que perderam o hábito de escrever com as mãos e precisam recuperá-lo para elaborarem seus textos. Assim, tudo se torna caótico quando esta máquina fecha a cara. Emburra.

**

Amigo leitor, esta coluna me é um desabafo. Mesmo chamando meu computador de geringonça tecnológica, estou numa tristeza sem dó porque está velho e fez parte da minha vida por um longo tempo. Ele é meu amigo. Vou fazer de tudo para recuperá-lo. Mas se não for possível, vou guarda-lo como um companheiro até nas horas de solidão.

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O retorno, nas palavras de Pessoa

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Este é o tempo em que as ideias correm soltas, o que nos possibilita buscar diferentes caminhos; a mente não se aquieta, vai com rapidez do real ao imaginário, saudável postura ante à pandemia que tanto nos recolhe e preocupa.

Querendo escrever sobre o momento em que vislumbramos o retorno à vida coletiva e produtiva, encontrei nas palavras de Fernando Pessoa expressões que explicam o que estamos vivenciando com lógica estonteante. Ah, o nosso eterno poeta, tão genial e sempre atual. Através dele podemos compreender melhor o mundo em qualquer época história. Ele é atemporal.

Este é o tempo em que as ideias correm soltas, o que nos possibilita buscar diferentes caminhos; a mente não se aquieta, vai com rapidez do real ao imaginário, saudável postura ante à pandemia que tanto nos recolhe e preocupa.

Querendo escrever sobre o momento em que vislumbramos o retorno à vida coletiva e produtiva, encontrei nas palavras de Fernando Pessoa expressões que explicam o que estamos vivenciando com lógica estonteante. Ah, o nosso eterno poeta, tão genial e sempre atual. Através dele podemos compreender melhor o mundo em qualquer época história. Ele é atemporal.

Gosto de lidar com palavras, para melhor dizer, brincar. Em um devaneio literário, vou ter a ousadia de escrever esta coluna, fazendo das palavras do poeta, as minhas. Ah, como seus versos guardam sábias expressões! Confesso que jamais conseguirei criá-las com tamanha maestria. Seria até enganador de minha parte se afirmasse o contrário.

 

***

 

Este tempo é o futuro do passado em que sentimos, com enorme nitidez, como a vida é breve e a alma é vasta. Sabendo que é possível morrer do nada, experimentamos os dias pela metade e, no vagar das horas, ficamos à deriva, ressuscitando lembranças tantas, reencarnando no passado, reencontrando vilões, heróis e nós mesmos com espada em punho. Reerguendo-nos. Fazendo-nos.

Tentamos desvendar os mistérios que nos guardam, verdadeiros universos perdidos na memória. São eles que guiam nossos destinos do nascer ao envelhecer. Ficamos, nesta pandemia, pois, em estado de vigília. No ventre.  Aguardando o honrado retorno que trará nossa força inteira, como benção. O amanhecer silencioso, então, poderá murmurar, num canto jovem e puro, o recomeçar. Será um novo mergulho no oceano imenso do tempo, quando a história de todos será refeita com suor, carne e terra. Seremos mestres?

Suavemente, deixaremos a sombra eterna do hoje, o passado do amanhã. Não vai ser possível nos defender de coisa alguma; posto que o agora tornar-se-á fumaça de uma chama sofrida.

Toda a história tem suas glórias. 2020 terá nome, fama e guardará a alma inteira dos povos como retrato eterno de um enigma, que ganhou e perdeu gênios, que guardou sonhos intactos, que velou dias solitários e solidários. 2020 terá rosto sério e entranhas carregadas de regras cuidadoras de vidas, retratadas com tristezas e esperanças. 2020 não será inútil, nem um ano dourado, mas um tempo de cumprimento do dever.

Os tempos seguintes serão iluminados pelo querer, nunca indiferente aoo estar ao lado de outras vidas que caminharão sob o silêncio dos céus, sempre fiéis às palavras ditas. Tudo mais será com Deus.

 

***

 

Poemas pesquisados na obra O Eu Profundo e os Outros Eus, Nova Fronteira, 2006.

 

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Enquanto a vida acontece, o autor cisca grãos de gergelim

segunda-feira, 06 de julho de 2020

Ao ler alguns textos literários na semana passada, indicados pelo Clube de Leitura Vivências, como as poesias de Catherine Beltrão, contidas em seu livro, Poesias  Desnudas, editora In Média Res, 2020, e os contos de Marcelo Moutinho, reunidos no livro Ruas de Dentro, editora Record, 2020, tive uma impressão interessante: a vida não começa, nem termina com a literatura. A literatura decorre de um momento pinçado na dinâmica do acontecer, como a chuva que chega e vai, rega o solo e toca as vidas. Tocando-as, escuta suas vozes e sente seus gestos.

Ao ler alguns textos literários na semana passada, indicados pelo Clube de Leitura Vivências, como as poesias de Catherine Beltrão, contidas em seu livro, Poesias  Desnudas, editora In Média Res, 2020, e os contos de Marcelo Moutinho, reunidos no livro Ruas de Dentro, editora Record, 2020, tive uma impressão interessante: a vida não começa, nem termina com a literatura. A literatura decorre de um momento pinçado na dinâmica do acontecer, como a chuva que chega e vai, rega o solo e toca as vidas. Tocando-as, escuta suas vozes e sente seus gestos.

Então, pensei, com os olhos fixos na janela, que a produção literária apenas sobrevoa os rumos do acontecer, subordinado ao destino, tão determinante, que decide o rumo das decisões. A literatura é não é mais do que uma exclamação ao vento.

O imaginário é a instância criativa que atiça a produção das artes que falam do mesmo assunto através de pontos de vista distintos. Na verdade, o ser humano é inquieto e precisa extravasar seus sentimentos e percepções; a visão da realidade numa lhe basta. Quer ir além. Por isso, ele escreve, escultura, pinta, canta ou dança. É um ser de expressão.

Então, concluí que ele vai ciscando os grãos de gergelim feitos de nutrientes nobres que encontra pela frente. Até o andar rotineiro pelas calçadas pode evocar motivos para o artista se expressar. Provavelmente, o escritor gosta de silêncios e faz das palavras que escreve a sua voz; a sua prosa, a sua poesia.

Certa vez, fui assistir o resultado de um concurso de poesia. A vencedora, para meu espanto, foi a que tinha apenas uma palavra escrita: fim. Há anos tento compreender os critérios que fizeram a comissão examinadora decidir, dentre tantas, pela poesia de uma só palavra como vencedora. Agora, escrevendo a crônica, uma ideia conclusiva, de simplicidade estonteante, explode em mim. O fim está em tudo. Ou seja, temos que compreender que a vida continua quando as coisas acabam, inclusive quando findamos.

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A literatura cuida da divina interação entre o dono e seu cão

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Hoje vou tratar de um tema que não tenho abordado aqui. Desconheço o motivo pelo qual pouco escrevi a respeito dos cachorros uma vez que possui farta literatura sobre estes seres especialíssimos, como dizia José Dias, em Dom Casmurro. Alguns livros estiveram sob meus olhos, como Marley e Eu, de John Grogan; Caninos brancos, de Jack London; Os Colegas, de Lygia Bojunga. 

Hoje vou tratar de um tema que não tenho abordado aqui. Desconheço o motivo pelo qual pouco escrevi a respeito dos cachorros uma vez que possui farta literatura sobre estes seres especialíssimos, como dizia José Dias, em Dom Casmurro. Alguns livros estiveram sob meus olhos, como Marley e Eu, de John Grogan; Caninos brancos, de Jack London; Os Colegas, de Lygia Bojunga. 

Passei três anos da minha vida escrevendo, com amor e dedicação, a história de um cachorro, o Labareda, que foi publicada pela editora Paulinas, em 2007, com o título Um Cão Cheio de Ideias. O texto foi adaptado para o teatro e apresentado no Rio de Janeiro, na Casa de Cultura Laura Alvim e no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, do mesmo ano. 

Há pessoas que vivem cercadas por cães, sejam vira-latas, de raça, pequenos, grandes, peludos. Sejam de várias cores. Eles dão um toque especial aos dias da cidade, à rotina doméstica, à vida de pessoas de todas as idades, principalmente das crianças. 

Penso que são anjos que vêm à Terra para nos proteger. Conversando com amigos que gostam de cães, chego a observar as missões que têm junto a nós e a identificar os momentos específicos em que surgem em nossa vida. Talvez seja por isso que dizem que não somos nós que os escolhemos, mas são eles que nos adotam; muitas vezes, chegam a nós de modo inesperado. A convivência com os cães aprimora as capacidades humanas de amar e de cuidar, aprofunda os sentimentos de generosidade e companheirismo. 

Acredito que têm a função de tornar seus donos pessoas melhores e de apoiá-los a experimentar a vida nos diferentes momentos, oferecendo-lhes presença incondicional, vivacidade, carinho e atenção. São criaturas doadoras de afeto.

Construímos uma história própria com cada um dos nossos cães, e, quando partem, deixam-nos lembranças inesquecíveis. Por acaso, alguém nos recebe de modo mais afetivo? Por acaso, neles percebemos um olhar não verdadeiro? Por acaso, nosso cão de estimação nos deixou quando estávamos doentes ou aborrecidos? Ah, os cães captam os mais sutis sentimentos das pessoas com quem convivem; são capazes de perceber além do que imaginamos. 

Por serem capazes de amar profundamente, os cachorros sofrem imensamente quando seus donos se ausentam. Stephen P. Lindsey escreveu o roteiro do filme Hachiko - Amigo Para Sempre, baseado na história real de um cão japonês acostumado a acompanhar o dono à estação de trem diariamente. Quando o dono falece, durante anos, até o final da vida, vai esperá-lo no mesmo lugar.  

Segundo Chico Xavier, os cães são seres viventes que possuem alma. A espiritualidade canina é detalhadamente descrita no livro Angel Dog: Anjos de Quatro Patas, de Allen Anderson. Da mesma forma que contribuem para a nossa evolução espiritual, eles precisam de nós para se desenvolverem. Tanto o é que a relação de um cão com seu dono revela uma interação divina; ambos se transformam pelo amor, pela sinceridade e pela solidariedade. 




 

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Antes de escrever sobre a verdade, vou conversar com meu amigo Charles!

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Na quietude destes dias pandêmicos, tenho voltado ao passado. Andei passeando pela adolescência, época de grandes questionamentos, quando busquei a verdade em tudo. Como na oficina literária virtual que estou fazendo, para melhor dizer, reencontrando meus amigos de escrita com os quais convivi por mais de dez anos, decidimos escrever esta semana sobre a verdade. Ah, como este momento está cheio de magia! Tanto é que estou lendo O Universo Numa Caixa de Nós, de Stephen Hawking. Suspeitei que poderia encontrar algum fundamento na física e na matemática, e não estava enganada

Na quietude destes dias pandêmicos, tenho voltado ao passado. Andei passeando pela adolescência, época de grandes questionamentos, quando busquei a verdade em tudo. Como na oficina literária virtual que estou fazendo, para melhor dizer, reencontrando meus amigos de escrita com os quais convivi por mais de dez anos, decidimos escrever esta semana sobre a verdade. Ah, como este momento está cheio de magia! Tanto é que estou lendo O Universo Numa Caixa de Nós, de Stephen Hawking. Suspeitei que poderia encontrar algum fundamento na física e na matemática, e não estava enganada

A literatura guarda inesgotável sabedoria, inclusive é capaz de fazer dos números fonte de ideias que nos nutrem. Por isso, ela nos salva todos os dias. 

***

Não ousarei dizer o que é verdade. Se é uma conformidade com a realidade concreta, jamais pode ser interpretada. Mas existe, por acaso, alguma realidade que não seja explicada, deduzida? E, aí, o que vem a ser verdade, meu amigo Charles? Sinto necessidade de mergulhar na filosofia para compreendê-la, não para dizê-la. Ora, pois sim!, a verdade pode ser determinada em qualquer esquina, por um João da vida. Nos meus tempos de bancos universitários, encontrei Max Weber na biblioteca, sentado num livro, que me disse, quase em tom de segredo, que a realidade pode ser tomada a partir de múltiplos pontos de vista, os quais, como num espectro, vão ganhando interpretações ao longo do tempo. O que é verdadeiro hoje, pode não ser amanhã. Então, a verdade está indissociável da relação tempo-espaço, uma vez que os espaços são modificados através do tempo por acontecimentos em que o homem interage entre si e com a natureza perenemente. Ah, o sábio Einstein, grande pensador incubado pela luz das estrelas, disse, de modo afirmativo, que a matemática é eterna como E=mc². Tudo está intricado e dependente, como a energia é da massa e da velocidade. 

Cada um de nós, enquanto observadores, vemos os fenômenos da vida de acordo com nossa posição. Nossas opiniões são particulares. Entretanto, o acontecer é um só, tal qual a velocidade da luz. Perfeito. Estamos inseridos na dimensão tempo-espaço. Quem nasce mulher, feminina será a vida inteira? É possível mudar o sexo e refazer os documentos. Tudo é relativo e incerto. Quanto mais tentamos ter certeza das coisas, com mais incertezas nos deparamos. Que estupendo é esse conceito! Qualquer modificação na dinâmica dos fatos numa determinada época, muda as relações que acontecem no espaço. E a verdade, meu amigo Charles, vai ganhando novos contornos, vai sendo enredada entre o céu e a terra; entre cada pôr-do-sol e nascer da lua. Talvez só exista uma verdade pessoal, vinda de Descartes: penso, logo existo.  

Ufa, querido Charles, vou ter de caminhar por outros bosques para entender as coisas desta vida terráquea. Eis outra grande verdade.  

 

P.S.: Quem é Charles? Ora, pois, se a literatura me permite imaginar...

 

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Caixas de medo

segunda-feira, 15 de junho de 2020

 

Nestes tempos de pandemia, certa madrugada, lá pelas 3 horas, fui
tomada por um medo indefinido, sei lá de quê. Tentei encontrar em minha volta
um motivo que pudesse me causar tal sensação. Nada havia. Um diálogo entre
o escuro e uma gata, contido no livro de Mia Couto, então, O Gato e o Escuro,
editado pelo Grupo Companhia das Letras, em 2008, guiou minhas reflexões a
respeito. Ah, como a literatura infantil guarda sabedoria.

 

Nestes tempos de pandemia, certa madrugada, lá pelas 3 horas, fui
tomada por um medo indefinido, sei lá de quê. Tentei encontrar em minha volta
um motivo que pudesse me causar tal sensação. Nada havia. Um diálogo entre
o escuro e uma gata, contido no livro de Mia Couto, então, O Gato e o Escuro,
editado pelo Grupo Companhia das Letras, em 2008, guiou minhas reflexões a
respeito. Ah, como a literatura infantil guarda sabedoria.

— Dentro de cada um há o seu escuro. E
nesse escuro só mora quem lá inventamos.
— Não estou claro, Dona Gata.
— Não é você que mete medo. Somos nós que
enchemos o escuro com nossos medos.

Ao estarmos mais aquietados, podemos encontrar tempo de abrir nossas
caixas de medo para compreendê-los. Para cuidar deles. Tratá-los, para
melhor dizer.

***

Num piscar de olhos, a pessoa é tomada por um estado emocional ante
uma situação que possa lhe fazer mal. Ou coloque em risco sua integridade
física, emocional e moral. O medo, assim, toma conta de alguém como um
invasor que assola os pensamentos, arrepia o corpo e dá um nó cego na alma.
Há sempre motivos, mas a maioria é aumentado nos meandros do imaginário.
Ah, como ele é competente para acabar com a alegria e a sensação de bem-
estar! Se na cozinha, na rua ou no trabalho, é um indesejável companheiro que
finca o pé ao lado de alguém e faz questão de assustar. Pressionar. Restringir.
Às vezes, não se sabe ao certo o que ele anuncia. Muitas vezes, pode
embrulhar traições, ser feito de abandonos e perdas. Ser resultante de
agressões, físicas ou não. O certo é que sempre revela uma ameaça. Além do
mais, as caixas de medo podem até juntar todos os buracos negros que foram

feitos ao longo da vida, que geram uma sensação descomunal de temor e
desamparo. Nossas costas não são largas o suficiente para dissipá-los, e, na
maior parte, nos curvamos ante aos tantos espantos que provocam. Dele
podemos nos tornar escravos com enorme facilidade.
Não é preciso ter noite fria, nem madrugada escura para o medo surgir,
que sempre traz um presságio, daqueles que contraria a vontade que se tem
de estar tranquilo. Mesmo se fraco ou falso, mesmo se poderoso ou amargo, o
medo não tem hora, nem lugar para nos encruar. É sedento e empombado
como a dor de dente. Sequestra nossa mente, espalha-se poderosamente por
todos os pensamentos e abandona-nos à solidão. O medo se alimenta da
reclusão e gosta de ser guardado em segredos. Quem está sob o estado de
temor vive numa angústia que transpassa o coração, às vezes por um longo
tempo, quiçá a vida inteira. Quem o tem, conhece bem a sua maldade.
Quem o sente precisa de alento, mas nunca deve ser considerado como
um pobre coitado. É preciso enfrentá-lo!, com coragem e determinação. É
verdade, este sentimento tem eficiência para inibir a inteligência e a
criatividade. Entretanto, se aceito e entendido, quem o domina é capaz de
reunir condições para superar os desafios nele contidos. Para tornar-se pessoa
liberta e feliz.
Sim, senhor! O tempo que a pandemia nos oferece pode nos ser
produtivo!

***

Eu tenho medo de unha encravada, pois conheço a imensidão desta dor!
Mas confesso que não gosto dos fantasmas vivos, que sabem roubar a
esperança com maestria e mentem com a cara mais lavada deste mundo, que
possuem mais crueldade do que qualquer bondade. São tão assustadores que
escondem os piores malfeitos atrás de sorrisos sedutores.
E o maior dos medos, o da morte. Querem saber? Não me preocupo com
a minha morte, mas não quero perder as pessoas que amo. Nem meus
cachorros e minhas borboletas.

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A simplicidade das maritacas e a poesia

segunda-feira, 08 de junho de 2020

Nestes tempos de pandemia, o pensamento reage como forma de apreender este momento tão estranho e absurdo. A filosofia, então, espalhada pelos tetos e paredes da casa, revela o espanto que nós, sujeitos tão bem capacitados e informados, temos fragilidade ante um vírus, um micro-organismo, que nos ameaça abater com tamanha eficiência e rapidez. Enquanto indefesos reféns, precisamos aceitar que estamos numa terrível guerra, mais ameaçadora das que se utilizam de bombas para atacar um inimigo visível e conhecido. O Covid 19 é um invisível desconhecido.

Nestes tempos de pandemia, o pensamento reage como forma de apreender este momento tão estranho e absurdo. A filosofia, então, espalhada pelos tetos e paredes da casa, revela o espanto que nós, sujeitos tão bem capacitados e informados, temos fragilidade ante um vírus, um micro-organismo, que nos ameaça abater com tamanha eficiência e rapidez. Enquanto indefesos reféns, precisamos aceitar que estamos numa terrível guerra, mais ameaçadora das que se utilizam de bombas para atacar um inimigo visível e conhecido. O Covid 19 é um invisível desconhecido. Estamos em plena batalha biológica que pegou o mundo com surpresa, tão diabólica que ainda mal sabemos como nos defender. Num redemoinho de preocupações, informações e questionamentos, sem conseguirmos compreender o significado dos acontecimentos, inéditos em nossas vidas, buscamos na filosofia, na história, na biologia e em ciências afins um conhecimento que amenize a angústia ante o incógnito. 

Eu, particularmente, cheguei a ler a respeito do sistema solar, da Via Láctea e da amplitude do universo para me deparar com outra questão mais complexa ainda. Quem somos nós? Afinal de contas, fazemos parte de um universo misterioso e chegamos a ser ainda bem menores do que o Covid 19, este ser microscópico que tanto nos atormenta! Ah, é uma questão transcendental à realidade factual, que precisamos nos debruçar sobre a metafísica. 

Aí, sorrateiramente, surge-me a poesia, que descreve empiricamente o que somos, como vivemos e o que podemos fazer dos nossos dias. Estava caminhando pelo meio da mata, mergulhada na natureza e conversando com pensamentos controversos, tentando entender um emaranhado de circunstâncias e informações, repentinamente, uma revoada de   maritacas passou sobre mim, indo de um lado a outro, piando, fazendo estardalhaço entre as copas das árvores, brincando com a vida. Parei e observei aquele modo simples e espontâneo de ser feliz. Um esbanjamento! Ah, como a alegria pode estar tão perto de nós, como as aves estavam de mim. As aves são seres ameaçados por doenças, incêndios na mata, predadores, ventanias, tempestades. São criaturas muito mais desabrigadas do que nós! 

Repentinamente, eu me senti carregada pelo poema Instantes, de autoria incerta, frequentemente atribuída ao escritor argentino Jorge Luiz Borges:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,

na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade

Bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais,

contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas,

nadaria em mais rios.

Iria em mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos letilha,

teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveram sensata e produtivamente

cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria.

Mas se pudesse voltar a viver, começara a andar descalço no começo da primavera e

continuaria assim até o fim de outono.

Daria mais voltas na minha rua,

contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,

se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas, como sabem, tenho 85 anos

e sei que estou morrendo.  

Quando voltei para casa e escutei o noticiário da televisão tomado por estatísticas e notícias atualizadas do vírus, perguntei-me de que vale ter o conhecimento de tantas questões, se a vida nos afasta do que é mais simples. Certamente, naquele momento, as maritacas me foram mais esclarecedoras do que qualquer explicação científica. Quando retornarmos à vida, pelo menos eu, vou valorizar ao momento de saborear uma tangerina, tanto quanto visitar a Torre Eiffel.

 

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